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segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

PATAS DE VELUDO




No início dos anos 60, um jovem casal adquiriu um terreno numa  área rural que pertencia a um professor local. Onde  antes fora uma palhoça, pedaços em bom estado de madeira de lei foram reutilizados para construir o novo lar; o solo nao era dos melhores, mas o básico para alimentar do casal, era possivel com hortaliças. No sexto ano, o casal ja tinha se estabelecido definitivamente; tinham como companhia um casal de filhos muito saudáveis.

Numa tranquila tarde, como tantas vivenciadas em meio àquela natureza verdejante, eis que surge pulando pela janela da cozinha ... uma linda gata branca .  A recém-chegada intrusa logo se alojou sob a cama do filho mais velho como se ja conhecesse o caminho ha tempos; ronronou, acariciou as pernas das crianças e tirou um cochilo sobre o tapetinho de fuxicos com a cabeça repousada num par das botinas do garoto.

Os dias se passaram sem grandes acontecimentos; a filha menor, carregava a gata pra cima e pra baixo da casa como se ela fosse uma boneca de pano, mostrando-se sempre meiga e graciosa com a menina. Um fato vinha deixando a mãe dos garotos meia intrigada com aquele animal, que em hipótese alguma, comia ou bebia o que quer que lhe fosse oferecido. Nem mesmo quando as panelas repousavam no rabo do fogão para esfriar, a gata dava atenção aos odores convidativos das carnes ou molhos, vindos de lá.
Na terceira semana da chegada da gata, então chamada babuxa, o filho do casal adoeceu repentinamente e nenhum remédio caseiro fazia com que seu apetite e sono voltassem ao normal .

O estado de saude do menino chegou a um ponto em que a mãe resolveu leva-lo para um check-up à cidade de baependi, onde na casa do tio, ele poderia ficar caso fosse necessário. Toda a familia subiu ao arraial para contratar o unico motorista e carro existentes; uma dkv roxa com assentos cor-de-mel, que parecia desparafusada por tanto rodar  naquelas trilhas irregulares, cheias de galhos e pedras roliças que acarpetavam  qualquer direção. Naquela manha, ouviram a gata miando sobre a porteira quando se distanciavam, olhando de vez ou outra para tras .
 Após cinco dias distantes do lar, as crianças percorreram as poucas casas das roças vizinhas com o intento de saber se tinham visto a ingrata babuxa que desaparecera por completo. Ninguem tinha jamais presenciado tal gata branca nas campinas ou trilhas da região.

Logo no início da quaresma, a dona da casa sentia ao se deitar, que um peso com quatro patas subia sobre seu ventre e alí ficava por longo tempo; muitas vezes acordava o marido e juntos olhavam por todo o lado pra descobrirem se realmente algum bicho se escondia no recinto. Passaram a dormir com duas lamparinas acesas todas as noites e, nem mesmo essas chamas bruxuleantes afastaram tal criatura invisivel do leito. O mal-estar tomou conta daquela senhora que pelas manhas passou a sentir que olhos ocultos lhe vigiavam os passos por toda a casa. Iniciou-se naquele período, batidas frequentes do lado de fora do dormitório das crianças após o por-do-sol e o mais estranho fato foi que a garotinha várias vezes via uma mulher baixinha de cabelo alto e arrepiado, correndo a se esconder por trás do mancebo onde seus vestidos de passeio ficavam expostos. Os pais chegaram a castigar a garotinha ameaçando-a  sempre em tranca-la no paiol se continuasse a dizer mentiras como aquela. A menina sentia falta da gatinha babuxa e ficava longo tempo debruçada numa das janelas tentando enxergar algum movimento branco e ligeiro correndo pelas cercanias .

No final da quaresma daquele ano que se deu em 06 de junho de 1966 - após longo jejum de carnes - o casal estava destrinchando um frango sobre a mesa da cozinha quando num piscar de olhos entrou pela  " janela fechada ", a gata branca .  Ela correu em direção ao dormitório das crianças e miou por seis vezes; logo após, uma gargalhada de mulher foi ouvida . Vasculharam os recintos palmo a palmo e nenhum vestígio da gata ou de gente, foi achado.
Após esse fato, o pai e a filha adoeceram, ficando acamados e febrís por dias.

No mes de agosto, por duas vezes, pessoas que passavam pela estrada correram em direção aos moradores, para saber se tinham conseguido escapar do fogo!  Labaredas eram vistas saindo do telhado durante a noite. A familia por uma vez apenas, presenciou tal aparição; parecia uma dança frenética de salamandras com mais de dois metros de altura. Assim como surgiam, desapareciam sem deixar marcas de combustão nas telhas.

Alguns moradores mais antigos da zona rural, aconselharam o casal a sair daquela terra, pois o antigo morador tinha fama de praticante de artes diabólicas. O mesmo era apontado como responsavel pelo desaparecimento de algumas criancinhas ha décadas atras; nunca provaram mas muitos afirmavam tal maldade.

Em janeiro de 1967, a família e alguns vizinhos preparavam um almoço para vinte pessoas ; era o final da folia de reis. Haveria um encontro de confraternização onde cada senhora trazia dois a tres pratos do melhor quitude a ser degustado durante as cantorias. As mesas improvisadas no terreiro exibiam um colorido e fartura de alimentos como ha muito nao se via naquele vale; todos participaram nos enfeites; crianças e idosos principalmente. Os cantores chegariam por volta das 13 horas com cantigas de bençãos aos presentes que aguardavam impacientemente aquela manifestação religiosa que se perdia nos tempos do brasil-colonia.

De longe ja estavam a ouvir a cantoria; deviam estar atravessando a cachoeira da sá julia - atualmente possui outro nome, que em nada condiz com o local.
Quando o palhaço abriu a porteira dando passagem ao grupo musical, uma saraivada de pedras caiu sobre a casa e o quintal.  Gritos apavorantes ecoaram dalí; quem estava do lado de fora, corria em direção à estrada e quem permanecia dentro da casa, chorava pensando se tratar do fim do mundo.  Louças e panelas foram derrubadas das mesas sem piedade; tudo se perdera num misto de terra, folhas e gravetos.


Por tres dias e noite apenas com a roupa do corpo, a familia permaneceu hospedada numa fazenda de amigos lá nos lados do areado. A partir daquele episódio haviam finalmente decidido deixar a propriedade assim que o esposo voltasse de baependi onde proclamaria a venda da mesma, no cartório de registros local .

Quando voltaram ao lar afim de prepararem a ida do senhor à cidade grande, notaram ainda sobre o chão todos os utensílios e panelas que tinham sido bombardeados pelas pedras, mas nao acharam pedra alguma como prova  real de que fizeram tantos estragos naquela tarde de festa sagrada, profanada por agentes maléficos. Tudo continuava como fora antes; até mesmo os saguís continuavam dependurados sobre as arvores próximas, indiferentes aos vizinhos humanos e barulhentos das roças .

Na ausencia do esposo, a senhora trouxe como companhia, uma jovem muito ativa e esperta, chamada france. Foi esta jovem que testemunhou a visita estranha de um cavaleiro nunca visto  antes nas imediações, que procurava pelo dono da terra, poucos dias após a saída deste dali.  Quando foi abordada pelo sujeito que lhe acenava da porteira , ela correu ao encontro da amiga para que falasse com aquela esquelética figura, vestida de forma tão bizarra sobre um cavalo também magro e visivelmente mal-tratado. Quem seria ?

O forasteiro perguntava se poderia falar com o dono da terra, pois ha muito que procurava por sua filhinha que desaparecera da familia junto com sua gata !
A esposa dissera que o marido estava do outro lado da serra apartando o gado, e que não tinha hora certa de voltar.  Nesse ínterim, france observava detalhadamente aquela figura mal-encarada: um chapéu de pêlo todo sujo de barro, uma camisa com listras vermelhas e pretas, uma calça bege onde uma perna vestia uma bota de cano longo enquanto a outra usava um sapato bicolor sem cadarço. Os dedos e pulsos reluziam com peças de ouro e tambem o tórax mostrava-se coberto por grossas correntes .  O homem cheirava a mirra e incenso, o que fez com que france se lembrasse dos domingos na missa do arraial, quando o oficiante passava com o velho turíbulo em brasa, pela assistencia devota. Mas aquele aroma tão sagrado não combinava com o indivíduo !
A senhora pediu a france para localizar o marido; a garota entendeu que aquele pedido era para que chamasse por algum vizinho, pois ambas sentiam -se inseguras diante daquele homem.

O * cavaleiro dourado * pediu uma caneca de café sem açucar, enquanto aguardaria a chegada do proprietário.
Não tardou para que a senhora voltasse e lhe entregasse cortesmente o líquido fumegante que sempre mantinha aquecido sobre o fogão.

De longe, oculta por tras das taboas do brejinho, france observava toda a cena da porteira, quando deu um grito, ao observar a violencia com que o cavaleiro tratara a senhora . O homem jogou todo o líquido sobre o pé da senhora dizendo :  - Voce é uma mentirosa... ele está é noutro lugar !
Ao dizer isso, o cavalo deu mais um pinote e desapareceu diante  da vista das mulheres .

Tal episódio foi demais para a senhora, que então ficou sem conversar por dias com quem quer que lhe dirigisse a palavra; foi france quem relatou a todos, o que presenciara naquela tarde com a amiga.  Muitos sitiantes foram levar uma  palavra de conforto e segurança ao casal, insistindo em que deveriam se mudar daquele cenário assombroso . As crianças estavam então, morando com os padrinhos no arraial naquela altura dos acontecimentos.  Na verdade a familia estava se desmembrando e os fenomenos ocorriam com maior frequencia agora, fosse dia ou noite.

No arraial, onde carecia de acontecimentos, alguns beatos chegaram mesmo a supor, que a gata branca adotada pelas crianças, era o espírito zombeteiro da velha sá julia, que viveu no vale por décadas .  Dizia-se que a velha tinha guardado dentro de uma cabaça, um diabinho - ou familiá - que lhe atendia pedidos nada cristãos quando invocado !  Algumas crianças ao visita-la um dia, levando biscoitos de polvilho que sá julia apreciava em demasia, localizaram sob o catre ripado por bambus que lhe servia de leito, a tal peça; abriram o tampo de sabugo de milho e... libertaram " sem intenção " ... o capetinha .  A velha, furiosa, correu atras dos traquinas que sabiam ter ganho uma inimiga para sempre ! De nada valeu, pois uma vez solto ... nunca mais o familiá daria sossego nas imediações .

Foi em meados de 68 quando preparavam os ultimos caixotes para deixarem a propriedade definitivamente que a familia, então reunida na sala, ouviu o som de arranhões vindos da janela da cozinha .  A menina foi a primeira a correr em direção ao som, pois reconhecia o autor do barulho; só poderia ser  babuxa ... sua fujona e amada gata branca que a chamava !  Seria mesmo ?

Desta vez a gata nao entrou na casa; olhou a todos e miou tristemente; do olho esquerdo parecia escorrer uma lágrima!  Aquela atitude felina impressionou a familia; abriram a porta e foram ao encontro da gata que caminhava apressadamente, vez ou outra se certificando de que era seguida.
A noite era clara, apesar da lua pálida sendo obscurecida por névoas vindas do brejo, por onde todos caminhavam em direção, solenemente, como se fossem a um féretro .

Babuxa aquietou-se e subiu num galho curvo de jaboticabeira que ladeava as aguas rasas onde outrora correra uma cachoeirinha; alí miou e miou até pular sobre umas pedras e arranhar frenéticamente a superfície das mesmas.
O homem, que sempre carregava um facão ao redor da cintura, adiantou-se ao local e começou a cavar onde a gata havia iniciado; as crianças sem palavra alguma ajudavam a depositar as pedras para longe da cavidade aquosa que pouco a pouco ia se formando. Pareciam saber que dalí sairia a resposta para os anos de assombro e mal-estar naquela propriedade. Estariam certos ? Sim, em parte solucionariam a maldição local.

Em pouco tempo apareceram ossadas misturadas que mal se distinguiam em meio ao lodo e areia; babuxa lambeu uma ponta de osso que parecia ser uma mão infantil; deu um salto de 180 graus e correu para as taboas que se refletiam tenuamente naquele pocinho recém aberto.  Ela nunca mais foi vista em parte alguma daquele vale.

A familia se mudou na manha seguinte, avisando as autoridades locais do tal achado . Após um detalhado exame se constatou tratar-se de uma antiga ossada  infantil - não se sabendo a quem pertenceria - junto de ossos de um animal  felino. Transportaram tais restos ao cemitério local e lá, sobre uma singela lápide pode-se ler a seguinte inscrição quase apagada pelo tempo : * Aqui jaz um Anjo que repousa com sua fiel Mascote * .




 


O BERÇO


 
Nos locais remotos deste vasto estado conhecido como minas gerais,tanto os raizeiros quanto as parteiras, desempenham papel fundamental na sociedade . Onde a medicina fosse nula ou ainda desconhecida por muitos,eram esses profissionais da saude que tinham de socorrer os seus semelhantes, a qualquer hora do dia ou  da noite.
Este primeiro Causo que vou contar, com a ajuda de uma senhora de extrema inteligencia e lembrança de fatos dos idos tempos, chamada Rosalina L.Pereira, refere-se a uma parteira que nunca deixava de atender suas suplicantes futuras mães, sem antes colocar dentro do seu bornal, uma pequena e desgastada imagem de Nossa Senhora do bom parto!

Foi por volta de 1915 ou 16 que deu-se um fato neste então arraial ,que abalou a fé e a rotina de seus habitantes.
Uma jovem senhora que nao completara os seus 15 anos de idade, estava grávida. Por sentir extremo mal-estar diante do seu metabolismo, maldizia o ser que gerava sempre que estava longe dos olhos de sua aia . Já, o seu velho e abastado esposo, nao media esforços para agradar aquela futura mãe e ao herdeiro(a) que nasceria literalmente rodeado com o  melhor que o mundo civilizado de então, tivesse a vender. Canastras repletas de tecidos brocados, linho ingles, brinquedos de porcelana, cristais e prataria chegavam de mes em mes do porto da cidade de são sebastião do rio de janeiro trazidas sobre mulas e carros de boi, por tropeiros atraves do unico acesso existente na época para o interior das minas gerais - a estrada real.
Dentre os objetos que chegaram ao casarão, o que mais deixou intrigada a gestante foi o berço de bronze todo aveludado em suas almofadas de pena de ganso que se erguia sobre quatro encaixes servindo como pés, com feições de macacos maliciosos e de aspecto  grotesco. No contexto, a peça parecia ter sido burilada por algum mestre italiano ou frances do melhor atelier europeu . Tal exótico berço logo tornou-se o assunto diário do arraial. Muitos habitantes com a desculpa de trazer frutas ou víveres ao casal, apareciam apos a  ¨Quitanda ¨das quartas-feiras apenas para dar uma espiada no tal mobiliário que se encontrava na entrada do saguão; enquanto que os outros objetos repousavam sossegados no boudoir da senhora, longe dos olhos até mesmo dos criados externos da casa .

Cada vez mais cheia de repulsa e transtorno por aquele seu proeminente ventre, a jovem senhora acompanhada sempre da aia, passava horas a fio caminhando sobre as pedras ao encontro do paço das jaboticabeiras, onde podia tirar os sapatos e descansar confortavelmente sem os laços e cordões que apertavam seu vestido .
Foi numa das tardes em que retornavam, já proximas do poço do querê-bem, que a jovem quase desfaleceu com um fluxo sentido com muita intensidade; a aia apavorada, gritava para que quem estivesse nas imediações acudissem  sem demora .

Dentre as pessoas a acudirem a senhora, a primeira a chegar e tocar na moça, foi uma raizeira e parteira de nome nêga-dos-arcos; tal apelido lhe fora dado porque ela costumava usar algumas argolas de ferro  costuradas ao redor da saia, que ha tempos idos serviram de grilhão à sua mae - a primeira negra fôrra da região que caíra na graça de um fazendeiro local, que na época residia com a familia em baependi, mas religiosamente enviava suprimentos aos familiares da  amante .
Ao tocar por impulso, o ventre da jovem senhora, a velha parteira ficou visivelmente desconcertada ; amarrou a cara e disse sem cerimônia :   -  Essa criança num pode nascê aqui não, vai trazê disgostu e réiva a toda gente decenti do arraiá ! Deus tá zangado com vossuncê ... preciza pará de xingá o anju ! 

A jovem empalideceu e nao disse uma unica palavra.  Nao faltou gente a esse tempo, a correr para perto da gestante com o propósito de ofender e enxotar a parteira. Ameaçaram-na inclusive com chicote se ela não se desculpasse pelas palavras ofensivas à dama da sociedade local . A nêga-dos-arcos não se deixou intimidar e olhando fixamente pra todos em volta, completou sua fala, com a seguinte revelação :
- Essi poço qui mata sede de todus oceis num é lugá pra afogá genti nem animar novinho !  Só em pensá tar coiza, Deus já tá Castigando ... sendo brancu ou pretu, ricu ou pobri ! Foi o Escandalo do ano, tal episódio .  A parteira, para se sentir fora da perseguição  popular, resolveu descer a serra e se alojar numa gruta nos lados do congonhal onde apenas os bichos lhe fariam companhia sincera . Não atenderia a nenhum chamado daquele arraial pelo resto dos seus dias, mesmo que o padre a ameaçasse de excomunhão.

O tempo foi passando e aos poucos o arraial se engajou em outros assuntos mais picantes que ocorriam pela região. Foi numa noite nublada do sétimo mes de gestação que a jovem senhora se viu em apuros, pois seu bebe nasceria prematuramente. Foi a aia acompanhada de duas senhoras vizinhas que serviram de parteiras naquele momento de muita dor acompanhado por gemidos. De repente fez-se um silencio tumular naquele quarto  - apenas viram a aia saindo, tropeçando e chorando pelo jardim  da propriedade.


Atualmente o casarão ainda encontra-se em pé no arraial, que já é um município, e lá reside a ultima descendente daquela familia que ha décadas foi marcada por uma maldicão, segundo dizem, os mais velhos.
O  tal berço encontra-se meio amassado, sem os pés, jogado num canto do quintal consumido por ervas rasteiras e madeira podre como relíquia dos tempos faustos.
Ah sim, o bebe nasceu forte e esperto . A mãe ao contempla-lo deve ter tido um colapso pois morreu com ele nos braços;  e este continuou aconchegado ao corpo que esfriava, a grunhir por frio ou perda da mãe . Naquela noite nascera um macaco naquele corpo de mulher que nao tardou  a sair dependurado pela cumeeira ao encontro da janela aberta, e sumir aos berros, rumo ao paredão.